terça-feira, dezembro 08, 2009

O mundo como relógio

Durante séculos, a visão dominante sobre o universo era de que este se tratava de uma máquina. Essa ótica mecanicista remonta a vários pesnsadores, entre eles Galileu Galilei, Roger Bacon e René Descartes.
O objetivo de Bacon era um conhecimento que pudesse ser usado para dominar e controlar a natureza. Para ele, a natureza tinha de ser acossada, obrigada a servir, escravizada. O cientista deveria extrair da natureza, sob tortura, todos os seus segredos. Assim, “sua idéia da natureza como uma mulher cujos segredos têm de ser arrancados mediante tortura, com a ajuda de instrumentos mecânicos, sugere fortemente a tortura generalizada de mulheres nos julgamentos de bruxas do começo do século XVII”.
Já na época de Bacon, o surgimento do relógio mecânico provocava alterações profundas na sociedade. A maioria das cidades tinha um relógio público instalado nas praças, que passava a governar a vida de todos. Antes o tempo era visto como abundante e associado ao ciclo inalterável do solo. Com o deslocamento da economia da agricultura para a atividade comercial, a ênfase deslocou-se para a mobilidade e o tempo do relógio passou a ter grande importância.
À época de Descartes, a fabricação de relógios havia alcançado um alto grau de sofisticação e fascinava a todos por sua perfeição. Isso fez com que o filósofo comparasse o ser humano ao mecanismo do relógio: “Considero o corpo humano uma máquina (...) Meu pensamento (...) compara um homem doente e um relógio mal fabricado com a idéia de um homem saudável e um relógio bem-feito”.
A partir de então, todos os pensadores e cientistas vão utilizar o relógio como modelo da natureza. Newton irá comparar o relógio com o movimento dos planetas. Para ele, o universo era gigantesca máquina, totalmente causal e determinada. Se o mundo físico, era uma máquina, Deus era o relojoeiro, que, no início dos tempos, criou todos os átomos do universo e deu a eles suas características e regras de funcionamento. Dessa forma, a gigantesca máquina cósmica é completamente causal e determinada. Tudo o que aconteceu teria tido uma causa definida e dado origem a um efeito definido,e o futuro de qualquer parte do sistema podia – em princípio – ser previsto com absoluta certeza.
Um aspecto importante da teoria da Newton é a idéia de que o tempo é absoluto: “O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo, e por sua própria natureza, flui de modo igual, sem relação a qualquer coisa externa”. Em outras palavras, o tempo fluiria da mesma maneira em todos os locais do universo.
Posteriormente, com Laplace, a figura do relojoeiro se tornou desnecessária e sobrou apenas a idéia do universo como relógio.
Mas o que é um relógio? Essencialmente, é uma máquina previsível. Qualquer relógio em estado normal irá ter sempre o mesmo comportamento: os ponteiros seguirão sempre no sentido horário, o ponteiro dos segundos andará mais rápido que o ponteiro dos minutos, que andará mais rápido que o ponteiro das horas.
Para entender o relógio, basta desmontá-lo e analisar suas peças. Essa característica do relógio deu origem à idéia de “separar para conhecer”, base do pensamento cartesiano. Assim, qualquer fenômeno poderia ser compreendido pela decomposição e análise de suas partes.
Por outro lado, a visão mecanicista do universo deu origem à idéia da natureza como serva do homem. Essa postura já havia sido antecipada por Francis Bacon, segundo o qual a natureza deveria ser acossada em seus descaminhos, obrigada a servir e reduzida à obediência. Ótimo exemplo dessa visão do mundo é o mapa dos EUA: a separação dos estados é em linha reta, desconsiderando a questão geográfica. Enquanto a maioria dos países utiliza rios e montanhas para fazer essa divisão, os norte-americanos fazem a divisão utilizando a lógica cartesiana de forçar a natureza a se curvar diante de seus desígnios.
Os habitantes de Nova York talvez tenham sido os que mais encarnaram essa postura. Ao saber que o presidente Thomas Jefferson acelerava os negócios com Napoleão Bonaparte para a aquisição do território da Lousiana os habitantes de Nova York perceberam que, com o novo território, o portão da América do Norte passaria a ser a cidade de Nova Orleãs, com clima melhor e melhor localização. Para fazer com que seu porto voltasse a se tornar importante, simplesmente fabricaram um rio ligando o oeste com Nova York.
Os ianques, então, orientados pelo engenheiro-chefe Canvass White, lançaram-se com afinco e com dinheiro na construção do "seu" rio Mississippi. Um imenso conduto, o canal do Erie, com 580 quilômetros de extensão e 72 eclusas, foi escavado a pá e picareta, rasgando a terra da periferia de Nova York - passando por Albany, Syracuse e Rochester - até Búfalo, na margem do lago Erie.
Essa era a idéia por trás dos chamados samsionistas.
O samsionismo é a doutrina originada das idéias do Conde Cláudio Henrique de Saint Simon (1760-1825), que postulava o advento de um mundo dominado pela ciência. Segundo Abbagnano (1970) Saint Simon foi o verdadeiro fundador do positivismo social,a doutrina que queria reorganizar a sociedade baseando-a na ciência e na tecnologia.
Para os samsionistas, a natureza deveria se curvar diante da vontade do homem, exemplos disso são os canais de Suez e do Panamá, realizada por samsionistas, em que a terra foi cortada para permitir a navegação entre áreas antes isoladas.
A idéia de que o homem deveria respeitar a natureza é muito recente e marca a decadência do relógio como modelo de mundo. No novo modelo, as coisas são vistas pelas suas relações entre si e os fenômenos deixam de ser vistos como deterministas. A natureza, e especialmente, a natureza humana, não é um relógio cuja análise das peças permite a previsão de seus movimentos futuros.
Autores como Edgar Morin e Fritjof Capra são alguns dos novos pensadores que combatem a visão mecanicista do mundo, defendendo a idéia de que os fenômenos são partes de sistemas, portanto, inter-relacionados.
Em um exemplo do filme O ponto de mutação (baseado na obra de Capra), a visão sistêmica veria a árvore não de maneira isolada (como o faz a ciência clássica), mas por suas trocas sazonais entre com a terra, o céu e os animais. Um pensador com o novo paradigma veria a árvore em sua relação com toda a floresta. Veria a árvore como lar dos pássaros e habitat de insetos. Para quem analisasse a árvore como algo isolado, não haveria sentido na árvore produzir tantos frutos, já que somente uma mínima parcela deles dá origem a frutos. Mas em uma perspectiva complexa, a abundância de frutos faz sentido, pois esses servem de alimentos para centenas de animais, que por sua vez se encarregam de espalhar as sementes das árvores pela floresta, perpetuando as espécies vegetais.

REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia.São Paulo, Mestre Jou, 1970
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1987.
SCHILLING, Voltaire. Nova York, Capital do Mundo, 2004. História por Voltaire Schilling. Disponível em: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/index_mundo.htm. Acesso em: 30.05.04.
TEMPO e espaço. Rio de Janeiro: Abril, 1993
WHITROW, G. J. O tempo na história: concepções do tempo da pré-história aos nossos dias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.

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